Quando faleceu em 2019, aos 51 anos, a professora Lucileide Saraiva já lutava pelo direito de receber os precatórios do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).

Há quase 4 anos, a espera passou para o filho, Karlo Bruno Silva, 31, um dos 9 mil herdeiros do Fundef no Ceará.

Cerca de 3.500 docentes da rede estadual cearense que já faleceram têm o direito de receber os valores do Fundef – o que é transferido, por efeito, como herança. Os milhares de familiares, porém, têm enfrentado impasse e burocracia para obter o dinheiro.

“Ela ainda era viva e já falava desses valores, da luta na Apeoc. E hoje eu que estou nessa luta pelos direitos dela, que agora são meus. Sou filho único, éramos só eu e ela, então esse valor vai ajudar bastante. Não só a mim, mas aos outros. Karlo Bruno Silva. Filho da professora Lucileide Saraiva

A autônoma Júlia Regina, 67, também figura entre os “herdeiros”. Após 37 anos de casamento com Luiz Francisco do Rego, jogador de futebol cuja real paixão era ser professor da rede estadual, viu o companheiro partir, em 2013, por uma doença bacteriana.

Restam 10 anos de saudade e dívidas do tratamento.

“É um dinheiro que, pode ter certeza, vai chegar em boa hora, porque depois que ele foi embora minha vida ficou muito difícil. Tive que arregaçar as mangas. Os primeiros a serem pagos deveriam ser os herdeiros e viúvas, porque não temos mais de onde tirar”, opina.

O advogado Alano Jorge Menezes, 48, divide a lista de herdeiros do Fundef com os dois irmãos. Os três são filhos de Josefa Menezes, que se aposentou após dedicar à docência 25 dos 63 anos de vida. Em 2011, ela foi levada por uma metástase.

“É burocrático e demorado, o que aos meus olhos não deveria ser, porque o direito já foi concedido. Estamos aguardando que o juiz nos legitime como herdeiros. O dinheiro em si é muito bem-vindo, mas temos mais ânsia de fazer valer por ser um benefício conquistado por ela”, destaca.

PROCESSO DE PAGAMENTO

O professor Anízio Melo, presidente do Sindicato Apeoc, que representa os servidores públicos das Secretarias de Educação do Estado e dos municípios, pontua que a entidade “já sabia da complexidade que seria para efetivar a chegada dos recursos aos herdeiros”, mas destaca que ela é inegociável.

“Há por lei a garantia de que os recursos sejam divididos entre herdeiros, mas a Justiça tem entendimentos diferenciados. Alguns juízes acham que alvarás resolvem, outros entendem que deve ser feito um inventário do falecido ou falecida”, explica.

“Na entrega dos precatórios, os herdeiros estão na última etapa, mas ela tende a demorar, se não houver por parte do Estado e da Justiça uma força-tarefa para encontrar uma saída que agilize a definição dos valores e a legalização para o pagamento. Anízio Melo. Presidente do Sindicato Apeoc

Na semana passada, o sindicato se reuniu com representantes do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) para pedir brevidade nos processos dos herdeiros do Fundef. A entidade propõe que “se crie uma vara especial, de transição, já que o volume de recursos e beneficiários é grande”, como frisa Anízio.

O assunto, porém, deve envolver o âmbito federal, segundo informou o TJCE em nota. “O caso em análise envolve, em essência, matéria de direito sucessório, regulada em questões de competência pela legislação federal, em especial, o Código de Processo Civil.”

O TJCE acrescenta que “está preparado para trabalhar as eventuais demandas que venham a ser ajuizadas, e não hesitará em tomar as providências necessárias caso seja detectada no futuro qualquer lentidão no trâmite de processos tão relevantes para a sociedade.

“BUROCRACIA PRECISA SER ATENDIDA”

O Diário do Nordeste conversou com a advogada Jane Calixto, presidente da Comissão de Direito Sindical da OAB Ceará, para saber qual é, geralmente, o procedimento adotado para pagamento de direitos a herdeiros de pessoas falecidas.

A advogada explica que um dos passos-chave para resolver as ações é a elaboração do inventário, se o falecido houver deixado bens; e a habilitação judicial das pessoas que receberão a herança.

“O juiz do inventário é informado sobre quem são os herdeiros sucessores do falecido, e essas pessoas serão habilitadas. Quando são muitas, é preciso nomear um representante, que vai responder pelo espólio”, detalha Jane.

“O inventário sendo concluído, a Justiça dá uma sentença e essa decisão deverá ser anexada ao processo dos precatórios do Fundef. A partir daí, a Justiça Estadual, onde tramita o precatório, deverá habilitar essas pessoas para receber as cotas. Jane Calixto. Presidente da Comissão de Direito Sindical da OAB/CE

A burocracia é estendida porque a obtenção do inventário e o processo para recebimento dos precatórios tramitam em âmbitos diferentes, sejam judiciais, sejam administrativos, segundo informa a advogada.

“O que tramita na Justiça Estadual é a ação do sindicato que originou esse precatório. Já a habilitação dos herdeiros dos professores, esse processo de inventário em si, tanto pode tramitar na Justiça como extrajudicialmente, por meio de um cartório”, frisa.

Mas diante de uma ação que envolve cerca de 9 mil pessoas, há alternativas para tornar os processos mais céleres?

“Isso pode ser requerido ao juiz onde tramita o processo do precatório. O sindicato pode requerer uma agilidade para tentar tramitar essa habilitação dos herdeiros de forma mais célere. Mas depende do magistrado que conduz o processo”, explica Jane Calixto.

De todo modo, a advogada resume: “infelizmente, há uma burocracia que precisa ser atendida. Até porque os juízes, quando se trata de sucessão, exigem alguma documentação para que haja essa habilitação”.

O QUE SÃO OS PRECATÓRIOS DO FUNDEF

Têm direito a receber o pagamento dos precatórios professores que estavam em efetivo exercício da docência na educação básica estadual no período compreendido entre agosto de 1998 e dezembro de 2006 – e que trabalharam com remuneração inferior à adequada.

Na lista, estão pessoas que, à época, ocupavam cargos, empregos ou funções, integrantes do quadro de servidores do Ceará, com vínculo estatutário ou temporário. Também recebem os respectivos herdeiros, em caso de falecimento dos profissionais beneficiados.

O pagamento teve início no dia 4 de fevereiro deste ano, dividido em lotes:

1º lote: 867 pessoas;
2º lote: 1.369 pessoas;
3º lote: 2.836 pessoas;
4º lote: 1.312 pessoas;
5º lote: 1.827 pessoas.

De acordo com a Secretaria da Educação (Seduc), o 6º lote deve ser pago no dia 11 deste mês. A lista de beneficiários de cada lote é divulgada no site da secretaria.

Texto: Theyse Viana