A falta de vagas nas creches faz com que 729 crianças de até três anos de idade aguardem numa fila de espera.
O problema não é de hoje e se repete todos os anos. São milhares de crianças, a maioria de baixa renda, que precisam de um lugar para ficar enquanto os pais estão no trabalho. Mesmo assim, em todo início de ano letivo, o drama é o mesmo: faltam vagas nas creches. Vale ressaltar que as barreiras não acabam aí, já que as irregularidades perpassam a precariedade.
A situação é tão crítica que o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) entrou com duas representações no Ministério Público contra a Prefeitura de Fortaleza. Afinal, são vistas estagiárias substituindo professoras, salas superlotadas e até cozinheiras e funcionárias de serviços gerais fazendo, sem nenhuma formação pedagógica, o papel de auxiliares.
Além disso, a reportagem flagrou instituições que não apresentam condições adequadas de higiene. Foi possível ver banheiros sem ralos e portas, paredes com buracos e infiltrações, salas escuras e sem ventilação e nenhum espaço lúdico.
Para se ter uma ideia, em uma creche no bairro João XXIII, até o filtro de água estava quebrado. As falhas foram identificadas, mas a reportagem foi impedida, pela Secretaria Municipal de Educação (SME), de fotografar a Creche Sobreira de Amorim e entrevistar a coordenadora da unidade de ensino.
Em relação às vagas, as 74 creches municipais e as 57 conveniadas não são suficientes. De acordo com o Educacenso 2008, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 10.326 crianças, de até três anos, estavam matriculadas em creches na Capital. Um número irrisório diante do universo populacional de 162.266 meninos e meninas nessa faixa etária, segundo o Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo a assessoria de comunicação da Secretaria Municipal de Educação, 729 crianças aguardam numa lista de espera por uma vaga nas creches. Mas as perguntas são: Onde estão as outras? Em casa ou nas ruas?
Salas transformadas
É por conta de dados alarmantes assim que Ana Ribeiro, diretora da Escola de Educação Infantil e Fundamental Alba Frota, no Centro, ressalta: “Todo ano é a mesma coisa. A demanda por vagas aumenta, e não conseguimos atender a todos. Alguém sempre fica de fora”. Segundo ela, a escola tinha cinco turmas de creche ano passado, mas, por determinação da SME, três salas de aula foram transformadas em turmas de 2º ano do Ensino Fundamental.
As outras duas salas abrigam crianças que já pertenciam à creche. Vagas para novatos não foram ofertadas. Outro agravante é que a creche nunca recebeu crianças menores de três anos, pois a instituição não possui berçário, como as demais visitadas pela reportagem. Além disso, os estudantes não ficam em período integral (manhã e tarde), pois a creche não possui nutricionista e muito menos auxiliares que possam ajudar as professoras em sala de aula.
“A demanda por vagas é grande, pois o Centro é um bairro de fácil acesso devido à quantidade de transportes. Os pais estão desolados, pois não terão onde colocar os filhos”, ressalta a diretora da escola.
Superlotação
Na Creche Dom Aloísio Lorscheider, na Praia do Futuro, apesar de a estrutura ser nova, as quatro salas de aula da creche funcionam, cada uma, com 20 crianças de idades misturadas. Para atender a toda essa demanda, apenas uma professora por sala. Por incrível que pareça, as auxiliares são as próprias cozinheiras e zeladoras. Segundo Márcio Moreira, advogado do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente e integrante da Comissão em Defesa do Direito à Educação, a resolução 361 do Conselho de Educação do Ceará diz que as creches devem ter, no máximo, 10 crianças no berçário (até um ano de idade); 15 no Infantil I e II (dois e três anos); e, acima de quatro anos, é permitido até 25 meninos e meninas.
Conforme Moreira, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) destaca que todo profissional que trabalha diretamente em sala de aula deve ter nível superior ou pedagógico, inclusive nas classes de Educação Infantil. Segundo ele, a lei deixa claro que a auxiliar deve cumprir um papel pedagógico. “O banho, o dormir, o brincar da criança são atividades pedagógicos. Tudo que acontece na sala de aula é aprendizado. Não dá para contratar pessoas sem formação para esse trabalho”.
IRREGULARIDADES
Unidades fechadas incluídas no censo
Durante as visitas realizadas nas creches no período de matrícula no ano passado, a Comissão em Defesa do Direito à Educação constatou inúmeras irregularidades. Entre elas, a existência de três creches inclusas no Censo Escolar da Capital, que estavam fechadas.
Segundo informações do advogado Márcio Moreira, do Cedeca, a Creche Municipal Jornalista José Blanchard Girão, no Conjunto Santa Filomena, apesar de inaugurada somente no segundo semestre de 2009, foi registrada no Censo de 2008. A outra é a Creche Professora Bernadete Oriá, no Conjunto Palmeiras II, também no censo, mas sem funcionamento.
Um dos casos mais graves é o do Centro de Educação Infantil Força Maior, no Jangurussu. A escola estava no censo como creche municipal, porém pertencia ao Estado na época. Atualmente, está fechada. Segundo Moreira, a comissão entrou com uma representação no Ministério Público. “Isso faz com que tenhamos dúvidas se Fortaleza, de fato em 2008, atendia a 10.326 crianças em creche”.
MÃO-DE-OBRA
Estagiárias substituem professoras nas instituições
O prédio é pequeno, escuro e sem ventilação. Nas quatro salas de aula, 80 crianças, entre dois e três anos, dividem espaço com a poeira, o desconforto e o cheiro de urina. O banheiro não tem porta e fica de frente para a cozinha, os ralos não têm tampa e as paredes estão cheias de buracos. O refeitório também é pequeno, apresenta infiltrações, a pintura está desgastada e não existe espaço lúdico.
Esse é o retrato de uma instituição que chamam de creche e é a única de um bairro superpopuloso na Capital: o Henrique Jorge. Não bastassem as péssimas condições estruturais, na Creche Municipal Sobreira de Amorim, estagiárias substituem professoras nas salas de aula. A denúncia foi registrada pela Comissão em Defesa do Direito à Educação, que esteve no local e constatou que a creche só tinha uma professora por turno. O restante era composto por estagiárias e auxiliares.
Segundo Maria de Jesus Araújo, integrante da comissão, a situação é ilegal e vai de encontro à Lei de Diretrizes e Bases da Educação. “As estagiárias deveriam ser supervisionadas, e não tomarem conta de 20 crianças”. Essa foi a única creche em que a dona-de-casa Joana Darc Gonçalves conseguiu matricular seu filho, de um ano e seis meses.
Joana conta que não foi fácil, afinal foram meses de procura. Por isso, ela está desempregada há um ano. Separada do marido e sem familiares morando em Fortaleza, ela não tinha com quem deixar o filho pequeno. “Tentei vaga em três creches, mas nenhum tinha berçário. Então, tive de ficar em casa”, diz.
Ela ressalta que o desespero aumentou quando, no fim do ano passado, descobriu que estava com uma hérnia abdominal e tinha de operá-la com urgência. Entretanto, mesmo com a vaga na creche, ela terá de pedir para um casal que mora vizinho à sua casa cuidar do seu filho durante o período de recuperação da cirurgia, pois o ano letivo na Creche Sobreira de Amorim só começa em abril.
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
A creche e o crescimento da criança
Silvia Helena Cruz
Professora da Faced/UFC
O desenvolvimento depende da maturação e acontece nas interações que a criança estabelece com os seus ambientes social e físico. Diversas áreas do conhecimento têm apontado o fato de que o ser humano se desenvolve num processo contínuo, mas, na infância, esse desenvolvimento se dá de maneira mais intensa. Para se desenvolver, a criança precisa sentir amor, estímulo e respeito de quem a cerca. A partir de todos esses conhecimentos acerca do desenvolvimento infantil, tem havido um interesse crescente pela qualidade das vivências oferecidas nas creches e pré-escolas. Já é consenso entre os pesquisadores da área que essas instituições devem ter como foco as crianças, tomadas na sua inteireza. E para oferecer oportunidades diversificadas de estímulo para o desenvolvimento da criança em todos os seus aspectos, as instituições que educam e cuidam desse público precisam contar com professores qualificados, conhecimentos específicos acerca dessa etapa da educação e muita sensibilidade para atender as necessidades das crianças, que trabalhem de acordo com uma boa proposta pedagógica. Além disso, são necessárias condições de trabalho fundamentais, tais como acompanhamento pedagógico frequente e um número adequado de crianças por professor. A estrutura física (salas e materiais disponíveis, tais como brinquedos e livros de literatura infantil são também imprescindíveis para a qualidade das experiências vividas por esses meninos e meninas). Essa qualidade é que vai determinar, efetivamente, se a frequência a creches será uma experiência prazerosa e estimulante para o desenvolvimento infantil.
Respostas
Falta de auxiliares Segundo a coordenadora da Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação (SME), Francisca Francineide de Pinho, as auxiliares de sala de aula são contratadas por uma empresa terceirizada, no entanto, a empresa está com dificuldade de encontrar profissionais qualificadas. Ainda segundo ela, a rede ampliou bastante o número de creches municipais, o que explica a carência de auxiliares. Mas, até o fim do mês, a empresa irá contratar novas auxiliares para as creches municipais
Superlotação coordenadora ressalta que são poucas as creches que estão com lotação acima da permitida por lei e afirma que quase todas têm duas profissionais trabalhando em sala de aula. No caso da Creche Dom Aloísio Lorscheider, na Praia do Futuro, em que há apenas uma professora para 20 crianças, a situação será resolvida até o próximo mês, com a contratação de três auxiliares
Falta de Estrutura Conforme Francineide de Pinho, a ausência de berçários nas creches se deve a pouca demanda de crianças de até um ano de idade. A SME não vê necessidade de comprar equipamentos. Sobre a Creche Sobreira de Amorim, no Henrique Jorge, ela diz que não havia espaço no bairro para a construção de uma unidade nova, portanto o prédio foi o único local na região encontrado para receber a demanda
Creche fechada Coordenadora da SME destaca que as creches incluídas no Censo Escolar de 2008 sem funcionamento haviam sido saqueadas por marginais. Portanto, não apresentavam condições reais para receber os alunos
PROBLEMAS
729 Crianças de até três anos de idade aguardam numa lista de espera por uma vaga em creches da Capital. Enquanto isso, centenas de mulheres estão desempregadas, pois não têm onde deixar os seus filhos pequenos
162 Mil meninos e meninas de até três anos vivem em Fortaleza, segundo o censo realizado em 2000 pelo IBGE. Entretanto, somente 10.326 dessas estão matriculadas em creches municipais. A demanda é grande, mas não há creche
KARLA CAMILA
REPÓRTER
Fonte: Diariodonordeste