As pessoas que defendem a educação pública de qualidade, a democracia, a integração regional com os países de língua espanhola e que apostavam nas correções que o Senado Federal havia feito no primeiro substitutivo da Câmara dos Deputados ao PL nº 5.230/2023, que trata da reformulação do Ensino Médio, viveram ontem um misto de horror, raiva e decepção com a certeza de que o País está longe de encontrar a rota definitiva para a inclusão social de seu povo, com dignidade.

Em meio a atropelos regimentais nos processos de votação, propositalmente conduzidos pelo presidente da Casa, dep. Arthur Lira (PP/AL), a Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (10/07), o parecer do relator Mendonça Filho (União/PE) – ex-ministro da Educação e coautor da medida provisória nº 746/2016, que deu origem a nefasta reforma do Novo Ensino Médio (NEM) no governo do golpista Michel Temer. Orientou favoravelmente à aprovação do Parecer, o líder do Governo na Casa, dep. José Guimarães (PT/CE), que disse ter defendido o acordo entre o Governo, o relator e a oposição, firmado durante a primeira tramitação da matéria na Câmara, em março último.

Ocorre, no entanto, que o segundo momento de debates e ajustes no texto da reformulação do NEM se deu no Senado, onde a sociedade civil teve acesso ao diálogo e conseguiu corrigir parte das incoerências aprovadas no substitutivo da Câmara. E mesmo mantendo princípios da Lei nº 13.415/2017, o texto do Senado revertia uma parte importante dos prejuízos remanescentes no NEM, especialmente nos itinerários formativos e em particular na formação técnica-profissional.

As alterações no substitutivo original da Câmara, feitas pelo Senado, contaram com a participação do Ministério da Educação, à luz do processo democrático que rege os acordos políticos no Poder Legislativo. Neste sentido, esperava-se do Governo maior empenho para concretizar esses acordos, mesmo com as contingências que, sabidamente, ele possui para aprovar matérias de seu interesse na Câmara dos Deputados. Mas não foi o que aconteceu!
Dias após a aprovação do projeto no Senado, o Líder do Governo na Câmara fez coro às ameaças do relator Mendonça Filho para rejeitar o substitutivo oriundo da Casa revisora, o que acabou se concretizando na votação de ontem. Em 24 de junho, a CNTE emitiu nota sobre a postura incoerente de rejeição sumária dos avanços obtidos no Senado e solicitou a intervenção do Governo para ajustar os acordos feitos nas duas Casas legislativas.

Por algum motivo, seja por falta de sintonia entre as lideranças do Governo no parlamento, seja por complacência trágica do próprio Executivo, isso não aconteceu e a votação desastrosa do PL 5.230/23 passou feito um trator sobre os sonhos da juventude por uma escola pública de qualidade.

Apesar das limitações no Congresso Nacional, não há como eximir o Governo de mais esse triste episódio para a educação brasileira. Não se trata apenas do silêncio do MEC durante todo o dia de ontem, ou da manifestação desarrazoada do ministro Camilo Santana comemorando o texto da Câmara nas redes sociais, sem qualquer menção aos avanços que ajudou a produzir no Senado. O Centrão e o setor privado derrotaram a educação pública, sem oposição do Governo, e com o MEC negociando com o relator a derrota do texto do Senado (total incoerência!).

O parecer final de Mendonça Filho, que vai a sanção presidencial, contemplou apenas emendas de redação do Senado. O núcleo da reforma de 2017 está mantido, com alguns avanços, entre os quais, destacam-se:

(i) a recomposição da carga horária de 2.400 horas para a formação geral básica – FGB (exceto no itinerário da formação técnica-profissional);

(ii) a reintrodução curricular das demais disciplinas da BNCC na FGB (acabando com a obrigatoriedade apenas de Português e Matemática);

(iii) a regulamentação nacional dos itinerários através de diretrizes do Conselho Nacional de Educação;

(iv) a oferta de ao menos dois itinerários por escola, os quais também devem observar os conteúdos da BNCC; e

(v) a vinculação do itinerário técnico profissional ao Catálogo Nacional de Cursos Técnicos e às diretrizes curriculares do CNE. Outras questões de relevância foram ignoradas e, mais preocupante, o eixo privatista do NEM se mantém inabalável e aderente às perspectivas do Novo Arcabouço Fiscal, que tem ameaçado a vinculação constitucional de recursos para a educação e a saúde e da qual a sociedade não abrirá mão!

O substitutivo do Senado, por sua vez, apesar de manter o viés privatista do itinerário da formação técnica profissional, apontava avanços, entre eles:

a limitação em 30% da carga horária para os itinerários formativos nas escolas de tempo integral;

a isonomia da oferta da FGB em 2.400h, mesmo para quem optasse pelo itinerário técnico profissional (o texto da Câmara mantém a carga horária da FGB em 1.800h nos cursos técnicos, podendo chegar a 2.100h se houver convergência de conteúdos entre o itinerário e a BNCC);

a regulamentação das contratações por Notório Saber para atuar na Educação Técnica e Profissional por meio de diretrizes nacionais;

a inclusão da língua espanhola no currículo obrigatório (pelo texto da Câmara, a oferta do Espanhol ou de outras línguas estrangeiras fica condicionada aos sistemas de ensino);

a oferta presencial e a utilização de Educação a Distância (EaD) no Ensino Médio apenas em situações de emergência temporária (o texto da Câmara não proíbe a EaD e condiciona sua oferta a regulamento dos sistemas de ensino);

a limitação de conteúdos extraescolares para compor o currículo dos estudantes nos itinerários formativos; (o texto da Câmara absolve cursos de curta duração e desconexos do currículo escolar (ex-Pronatec) e estimula o trabalho precoce de baixa remuneração); e

a obrigatoriedade de oferta noturna e presencial do Ensino Médio em municípios que apresentarem demanda manifesta (único ponto acatado pelo relator numa emenda de plenário).

Não obstante os prejuízos acima elencados, também o FUNDEB corre riscos de flexibilização, tal como aconteceu recentemente quando as matrículas das Escolas do Sistema S passaram a integrar o Fundo público. O apetite do setor privado sobre o FUNDEB não cessará e a disposição dos governos em se desvencilhar do compromisso da oferta pública escolar poderá precipitar novas alterações na Lei nº 14.113/2020.

Atualmente, outras rubricas orçamentárias são destinadas para as parcerias educacionais com o setor privado, e a expansão do itinerário técnico-profissional do Ensino Médio tende a acelerar o processo de privatização da escola pública, com todas as consequências já conhecidas.

A CNTE e seus sindicatos filiados continuarão lutando contra o desmonte da escola pública, forjado na reforma educacional de 2017, a qual, infelizmente, nem o processo de consulta pública do MEC sobre o NEM, tampouco a tímida ação governamental na votação de ontem na Câmara dos Deputados conseguiram reverter neste momento.