A ComCiência acaba de publicar uma edição dedicada ao tema “Ortografia”. Sem nunca ter negado a importância da escrita, sempre me preocupei com uma certa confusão entre escrita e fala no imaginário das pessoas em geral. E recentemente, essa preocupação reavivou inquietações que, acreditem, já tinha desde minha infância. Minhas filhas de seis e três anos têm adorado assistir a um desenho da TV Cultura de São Paulo, chamado Super Fofos. O programa é musicalmente excelente, com trilha orquestrada que já recebeu prêmios importantes. Um personagem em particular, o patinho Ming-Ming, tem uma característica de fala que comparo com a de outros dois personagens de minha infância.

Em um trecho da música principal do desenho, ele canta “Não somos glandões”, e se o verso seguinte fosse seu, cantaria “nem foltes também”. Dá para imaginar o que acontece em outros contextos onde apareceria um “erre”, nos diálogos com a participação de Ming-Ming. Essa característica é a marca registrada de um dos principais personagens de Maurício de Souza, o Cebolinha. Como esse personagem da Turma da Mônica nasceu primeiro nos gibis para depois ganhar as telas, aqueles que o conhecem certamente viram primeiro a sua fala com a característica troca de “erre” por “ele” na escrita dentro dos balões que representam os diálogos nas histórias em quadrinhos; e só depois, ouviram o efeito daquela “troca” na dublagem do desenho no cinema e na TV.

Aprendi a ler muito cedo e li bastante as histórias da Turma da Mônica. E sempre achei aquela fala do Cebolinha inverossímil – embora, obviamente, não soubesse o que essa palavra significava. Eu certamente sabia que uma criança que estava aprendendo a falar trocava alguns sons por outros, mas o Cebolinha já tinha passado dessa idade (devia ter por volta de sete anos) e eu nunca havia ouvido alguém falar como ele. Talvez ele se encaixe em um dos casos descritos pela Associação Brasileira de Dislexia: o disléxico sempre tem dificuldades com a ortografia, muitas vezes tem dificuldade para compreender textos escritos e às vezes tem dificuldade com a linguagem falada. Mesmo que o caso do Cebolinha seja de dislexia, acredito que a tal “troca”, na vida real, não se dê em todos os contextos de fala onde apareceria um “erre”.

E aqui entro na questão que abre este texto – a da confusão entre escrita e fala – e que um outro personagem infantil deixa ainda mais explícita. Trata-se de Hortelino Troca Letra, um coadjuvante dos desenhos do Pernalonga e do Patolino. Vejam só o nome desse personagem. Ainda que um ou outro episódio pudesse envolver em certos momentos a escrita, o que Hortelino “trocava” era rigorosamente o mesmo que Cebolinha e Ming-Ming: em sua fala, todos os “erres” eram pronunciados como “eles”. Portanto, não é letra que ele troca, mas sons de “erre”.

Não vou nem entrar nas diferentes pronúncias de “erre” decorrentes de diferenças dialetais, como, por exemplo, o “erre” “caipira” (que é chique em Nova Iorque). Basta falar nos “erres” de minha filha Anita, de três anos. Ela troca o som de “erre” por “ele” em contextos específicos: “O balão estoulou”, “Não entendi dileito”, “A Malina chegou”. Se pensarmos que o som do “erre” nesses contextos é diferente do som do “erre” em “rato” e “carro”, talvez não seja surpreendente que, nesses casos, minha filha pronuncie “erre”. Nos contextos em que há outra consoante antes do erre, como na música cantada por Ming-Ming, o “erre” é simplesmente apagado “A piscina é bem gande” ou “O papai é gandão” ou ainda “Meu pato ainda tá cheio de comida”. Quando o som de “erre” como o de “carro” e “rato” tem outra consoante depois, ele é transformado em uma espécie de semi-vogal: “Poi que?” ou “Eu tô usando o maitelo”.

O que quero dizer com tudo isso? Apenas que acho difícil alguma criança dizer que está “louca” para falar da rouquidão de sua voz – como o Cebolinha faria –, assim como acho difícil, na vida real, alguma criança dizer que está brincando com o “maltelo”. E o que Cebolinha e Hortelino ilustram é a visão (generalizada, por sinal) da escrita como representante única e correta da língua, diante da qual todo e qualquer “desvio” é considerado como erro. Mas o que seria, na verdade, a real característica desses personagens é uma fala diferenciada, e fala é som, não é letra. Além de ilustrar o equívoco, Cebolinha, Hortelino e Ming-Ming, na minha visão, ajudam a disseminá-lo.

Rodrigo Cunha é linguista e editor da ComCiência.